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O que seria, afinal, em direito das obrigações, responsabilidade compartilhada?


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Cerca de 200 países reuniram-se em Paris para a 21ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, para o estabelecimento de novas metas de redução da poluição atmosférica para os próximos anos. Dessa vez, a esperança é que os compromissos assumidos em âmbito internacional sejam observados por todos, ao contrário do que aconteceu com o Protocolo de Quioto, pelo fato de os Estados Unidos, responsáveis por boa parte da emissão de gases poluentes, não terem ratificado este tratado.
Nesse contexto de discussão sobre o meio ambiente é que eu gostaria de analisar um conceito relativo à responsabilidade civil: a denominada “responsabilidade compartilhada” em matéria ambiental. Ao final desse texto, também queria discutir como esse conceito poderia auxiliar na compreensão de certo instituto do direito de família.
Pelo fato desse texto versar sobre direito ambiental, é preciso, inicialmente, ter em mente um postulado da economia neoclássica, quiçá um binômio “necessidade-possibilidade”, relativo ao cerne do problema econômico: as necessidades humanas são infinitas e os recursos, limitados. Caberia à economia estabelecer esse equilíbrio, promovendo a administração da escassez.[i]
Esse problema econômico agravou-se no século XX e agrava-se ainda mais no século XXI, porque as necessidades humanas aumentaram, inclusive, artificialmente, por meio das técnicas de marketing, que estimulam o consumo de produtos e serviços desnecessários, como também aumentou significativamente o número de habitantes no mundo. Por outro lado, os insumos e matérias-primas para a produção de bens destinados à satisfação das pessoas vêm do meio ambiente e a Terra continua com o mesmo tamanho e com a mesma quantidade de recursos naturais.
Ademais, a fabricação da maioria dos produtos decorre da transformação físico-química de insumos e matérias-primas, liberando substâncias em grande concentração no meio ambiente, tanto por meio de gases na atmosfera, como também de líquidos e resíduos sólidos no solo. Diversos bens necessitam de energia para seu funcionamento, como os automóveis, que liberam diretamente os gases da combustão, e os eletrodomésticos e eletrônicos, que poluem o ar indiretamente, por usarem, por exemplo, energia de usinas termelétricas. Uma vez consumidos todos esses bens, eles retornam à natureza, sob a forma de poluição por resíduos sólidos.
A solução econômica mais eficiente está no consumo moderado dos recursos naturais, conservando ao máximo aqueles já retirados do meio ambiente dentro do sistema de produção, além de adiar-se ao máximo o descarte de produtos supostamente inúteis.
Tendo em vista que essas medidas restritivas exigem o sacrifício do interesse próprio, as saídas possíveis para esse problema são de duas ordens. A primeira delas dá-se pela educação ambiental, [ii] objeto de preocupação da comunidade internacional desde a década de 1940, destacando-se, em particular, a Conferência de Tbilisi, de 1977. Em âmbito doméstico, tem-se a Lei 9.795/99, que dispõe sobre educação ambiental no Brasil, sem prejuízo da disciplina do tema pelo Ministério da Educação, por meio das diretrizes curriculares nacionais.
A segunda saída é estritamente jurídica, por meio da responsabilidade civil em matéria ambiental.  Nesse sentido, a Lei 12.305/10, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, regula, em última análise, o “ciclo de vida dos produtos”, desde o seu ingresso no sistema econômico até o seu retorno ao meio ambiente. No artigo 9º desta Lei, estabeleceu-se, inclusive, uma ordem de prioridade em termos de gerenciamento de resíduos sólidos: a) não geração; b) redução; c) reutilização; d) reciclagem; e) tratamento; f) disposição final ambientalmente adequada.
Em síntese, deve-se evitar a geração de resíduos sólidos, promover a sua máxima utilização e o seu reaproveitamento, para, ao final, proceder ao seu retorno ao ambiente pela aplicação de tecnologias ecoeficientes.
A destinação final dos resíduos sólidos deve ser realizada por meio de sistema de logística reversa de pós-consumo, que consiste na organização dos canais de captação de bens descartados, para que recebam tratamento adequado no retorno ao meio ambiente. Com esse sistema de arrecadação de bens, facilita-se a implantação de programas de coleta seletiva, de reciclagem dos materiais, ou o aterramento e a incineração do lixo, quando não for possível o seu reaproveitamento.
Para que a logística reversa de pós-consumo seja efetivada, a Lei estabeleceu a denominada “responsabilidade compartilhada” de todos os elementos da cadeia de produção, que, nos termos do artigo 3º, inciso XVII, da Lei 12.305/10, é definida como o “conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei”. 
Os artigos 30 a 36 da Lei 12.305/10 estabelecem as diversas obrigações de todos os agentes que compõem a cadeia de produção para que os produtos sejam projetados, visando à sua reutilização e reciclagem futuras, como também se implantem os referidos mecanismos de logística reversa, para fins de coleta de determinados produtos e embalagens, além da responsabilidade dos consumidores de promover a entrega desses produtos para uma correta destinação final.
Pode-se fazer essa mesma análise do ponto de vista do direito civil. Afinal, produtos são bens suscetíveis de apropriação e, consequentemente, sujeitos ao regime jurídico do direito de propriedade, que permite ao seu titular usar, fruir e dispor do mesmo. Tradicionalmente, enfatizavam-se mais os poderes de uso e de fruição de determinado bem. No entanto, também passou a ter importância o poder de disposição sobre os bens, porque não se pode, arbitrariamente, descartá-los no meio ambiente sem qualquer preocupação. Ganhou importância a ideia da função socioambiental dos bens, que impõe responsabilidades ao seu titular, mesmo quando já tenha havido disposição desse direito por meio da alienação ou pelo abandono.[iii]
Assim, todos são responsáveis pela destinação correta dos produtos, por terem sido proprietários deles uma vez, seja ao adquiri-los como insumos, matérias-primas ou bens de consumo. Como a Lei 12.305/10 instituiu a responsabilidade compartilhada para todos aqueles que participaram do “ciclo de vida do produto”, resta analisar se esta é espécie de responsabilidade solidária, ou se seria nova espécie de responsabilidade civil.
No direito das obrigações, a solidariedade manifesta-se em casos de pluralidade de credores ou de devedores, permitindo-se a qualquer dos credores exigir, parcial ou totalmente, a dívida, ou ao credor exigir a dívida comum de qualquer dos devedores, ou de todos eles simultaneamente, pro rata ou em sua integralidade. Por meio da solidariedade, facilita-se tanto a cobrança pelos credores comuns, quanto o exercício da pretensão ao cumprimento da obrigação em face de qualquer dos devedores. Por ser uma situação que agrava a responsabilidade do devedor, o art. 265 do Código Civil estabelece um dos princípios gerais em matéria de solidariedade, segundo o qual “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
Considerando-se a responsabilidade compartilhada uma espécie de responsabilidade solidária, obter-se-ia maior efetividade na proteção do meio ambiente, porque se permitiria, por exemplo, ao Ministério Público, a propositura de ações civis para obrigar qualquer dos agentes econômicos, ou todos eles, a implantarem, por exemplo, mecanismos de logística reversa, cabendo, entre eles, a definição das despesas ou a possibilidade de sub-rogação de qualquer deles em face dos demais para se ressarcir do que tiver desembolsado no cumprimento da obrigação comum.
Por outro lado, sendo a responsabilidade compartilhada apenas um novo conceito destinado a chamar a atenção das pessoas para uma maior articulação entre elas quanto ao problema da poluição, ou, no máximo, ser espécie de cooperação dos agentes econômicos, isso, a meu ver, poderia ser bastante usado nos arrazoados forenses e nas argumentações doutrinárias,mas, em termos práticos, não passaria de logomarquia. Assim, pela lógica do direito ambiental, que estabelece o princípio da reparação integral dos danos causados ao meio ambiente, a natureza jurídica da responsabilidade compartilhada é de responsabilidade solidária.
Como mencionado no início desse texto, a questão sobre responsabilidade compartilhada em matéria ambiental pode trazer alguma luz para um tema polêmico do direito de família: a guarda compartilhada. Há, ainda, incertezas relativas ao conteúdo desse instituto jurídico, especialmente quanto ao modo de seu exercício e a fixação das obrigações dos genitores. Confusões entre guarda compartilhada e guarda alternada são comuns na prática, assim como as dúvidas em termos de prestação de alimentos para os filhos. É o que se pode observar na VII Jornada de Direito Civil, ocorrida em Brasília em setembro de 2015, em que se aprovaram enunciados por meio dos quais se buscou a superação dessas questões.
O raciocínio analógico de que guarda compartilhada importa em responsabilidade compartilhada entre os genitores e, sendo esta responsabilidade uma espécie de responsabilidade solidária, tornaria mais claro o entendimento acerca desse instituto jurídico.
Por exemplo, ambos os genitores devem concorrer para a prestação de alimentos, pouco importando com quem está o menor, porque são solidariamente responsáveis por seu pagamento, podendo-se exigir, tanto de um quanto de outro, parcial ou totalmente, unilateral ou simultaneamente, o cumprimento total dessa obrigação. Mesmo que os filhos estejam com um dos genitores, o outro responderá juridicamente de forma igual e integral por todas as necessidades dos menores, ainda que um deles queira se eximir das mesmas por entender que isso compete ao outro genitor.
Por fim, agradeço mais uma vez ao colega, Prof. Dr. Otavio Luiz Rodrigues Junior, pela oportunidade de participar da coluna sobre Direito Civil Atual, pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, como também gostaria de agradecer aos leitores e desejar boas festas e um feliz 2016 a todos!
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

[i] PINHO, Diva Benevides; VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de (Orgs). Manual de Economia – Equipe de professores da USP. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 11
[ii] PEREIRA-GLODEK, Christine, PEREIRA, Christiane; TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. “Os desafios da educação ambiental formal em matéria de tratamento de resíduos sólidos no Brasil”. In: FRICKE, K.; PEREIRA, C.; LEITE, A.; BAGNATI, M. (Coords.). Gestão Sustentável de Resíduos Sólidos Urbanos: transferência de experiência entre a Alemanha e o Brasil. Braunschweig: Technische Universität Braunschweig, 2015  
[iii] LEMOS, Patricia Faga Iglecias. Resíduos sólidos e responsabilidade civil pós-consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011

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